O que se vê nas ruas – 3

“Há ruas que mudam de lugar, cortam morros, vão acabar em certos pontos que ninguém dantes imaginara — a Rua dos Ourives; há ruas que, pouco honestas no passado, acabaram tomando vergonha— a da Quitanda. Essa tinha mesmo a mania de mudar de nome. Chamou-se do Açougue Velho, do lnácio Castanheira, do Sucusarrará, do Tomé da Silva, que sei eu? Até mesmo Canto do Tabaqueiro.Acabou Quitanda do Marisco, mas, como certos indivíduos que organizam o nome conforme a posição que ocupam, cortou o marisco e ficou só Quitanda. Há ruas, guardas tradicionais da fidalguia, que deslizam como matronas conservadoras — a das Laranjeiras; há ruas lúgubres, por onde passais comum arrepio, sentindo o perigo da morte — o Largo do Moura por exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do Necrotério lá se erguia a Forca. Antes da autópsia, o enforcamento. O velho largo macabro, com a alma de Tropmann e de Jack, depois de matar, avaramente guardou anos e anos,para escalpelá-los, para chamá-los, para gozá-los, todos os corpos dos desgraçados que se suicidam ou morrem assassinados. Tresanda a crime, assusta. A Prainha também. Mesmo hoje, aberta, alargada com prédios novos e a trepidação contínua do comércio, há de vos dar uma impressão de vago horror. À noite são mais densas as sombras, as luzes mais vermelhas, as figuras maiores. Por que terá essa rua um aspecto assim? Oh! Porque foi sempre má, porque foi sempre ali o Aljube, ali padeceram os negros dos três primeiros trapiches do sal, porque também ali a forca espalhou a morte!”


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